A produção de carvão em Cândido Sales (BA), uma atividade insustentável para trabalhadores e meio ambiente, expõe a urgência da reforma agrária
A área da Bacia Hidrográfica do Rio Pardo – BHRP abrange 37 municípios entre Minas Gerais e Bahia, todos com características socioambientais muito parecidas: predomínio de populações pobres e graves problemas relacionados a crimes ambientais. Quatro municípios baianos da BHRP – Cândido Sales, Encruzilhada, Vitória da Conquista e Canavieiras – estiveram entre os que mais desmataram áreas remanescentes da Mata Atlântica em todo o Brasil entre 2000 e 2014, segundo o SOS Mata Atlântica, e municípios da parte mineira da bacia também fazem parte desse ranking. Na lista suja de empregadores que fizeram uso de trabalho escravo no país, atualizada no início deste mês, constam 19 empresários baianos, 3 deles que estão em municípios da BHRP: Santa Luzia, Ribeirão do Largo e Canavieiras. Recentemente, em operação do Ministério Público do Trabalho – MPT com outras instituições federais, foram resgatadas pessoas em situação análoga à escravidão em todo Brasil. Na Bahia, dos 11 resgatados, 5 foram em carvoarias no município de Cândido Sales.
Para compreender melhor a relação entre as carvoarias e o trabalho análogo à escravidão, o Observatório do Rio Pardo conversou com João Ferreira Gomes Neto, mestre em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e pesquisador do tema.
Em sua dissertação de mestrado, “O que há por trás da cortina de fumaça?”, de 2012, João Ferreira faz uma análise sobre a produção de carvão vegetal e silvicultura do eucalipto no município de Cândido Sales. Nela, o autor pôde analisar as contradições e a capacidade do capitalismo agregar vários modos de produção, como o campesinato, a escravidão e o capitalismo dentro de um mesmo sistema – no caso, as carvoarias, que atendem a demanda das siderúrgicas do sudeste do país e das churrascarias e supermercados com o carvão empacotado.
João compreende que o trabalho análogo à escravidão está totalmente vinculado à modernidade e ao neoliberalismo. O pesquisador cita o exemplo da produção de ferro e alumínio. Utilizados em vários componentes, equipamentos, bens modernos e também na construção civil, eles dependem muito da matriz energética do carvão, que, na maioria das vezes é produzido através do trabalho análogo à escravidão. Sua pesquisa revelou que, à época, 50% das siderúrgicas brasileiras utilizavam carvão nativo, ou seja, carvão ilegal para aquecerem seus fornos.
Contradições na produção de carvão vegetal e eucalipto
A silvicultura do eucalipto para a produção de carvão mantém as mesmas relações precárias entre empregado e empregador nas carvoarias. “A organização social e a exploração do trabalho não mudaram com as florestas de eucalipto”, salienta o pesquisador. Em seu estudo, João também aponta as contradições do programa governamental do estado da Bahia “Floresta para o futuro”, que incentivava o plantio de eucalipto.
Para ele, a política pública parecia levar em conta apenas aspectos do reflorestamento, impedimento de desmatamento de novas áreas ou a recomposição florestal, sendo por isso uma política “encaixotada” na questão ambiental e que não pensou em como se daria essa produção no futuro. “Todo o plantio de eucalipto naquela época foi para fins comerciais e depois ele foi transformado em vários subprodutos, inclusive o carvão. Ou seja, aquilo que era feito na floresta nativa é replicado na região de floresta de eucalipto, não tem diferença nenhuma”, afirma João.
Segundo João Ferreira, muitas pessoas derrubavam a floresta nativa para acessarem os recursos públicos para reflorestamento com eucalipto, o que para ele é uma grande contradição. Com linha de crédito e licenciamento ambiental facilitado, os donos de carvoaria perceberam que podiam lucrar com a mata nativa e com o recurso do governo para plantar eucalipto, não havendo mudança na relação trabalho e natureza.
Para ele, a produção de eucalipto e carvão em Cândido Sales é tão subordinada ao sistema maior do capital, que a situação de trabalho análogo a escravidão não é somente por conta do empresário do carvão. A condição degradante de exploração do trabalho e apropriação indiscriminada da natureza está vinculada ao próprio capital, que necessita dessa estrutura, a baixíssimo custo, da produção de carvão para alimentar siderúrgicas, empacotadoras de carvão para churrasco e supermercados. Ou seja, o trabalho escravo não está relacionado somente à relação empregado/empregador, a própria estrutura do capital vinculado a essa atividade produtiva tem que ser análoga à escravidão porque tem que ser barato.
“O carvão não pode ser uma coisa cara, pois se assim for, o ferro fica caro, o carvão empacotado fica caro, então, ele tem que ser uma coisa muito barata, algo que requer mão-de-obra barata de baixa qualificação, de várias horas de trabalho, sem carteira assinada etc. Obrigatoriamente tem que ser barato”, destaca.
Uma atividade insustentável ambiental e socialmente
“O próprio sistema capitalista exige isso. Quando realizei o estudo, 50% das siderúrgicas brasileiras utilizavam carvão nativo, carvão ilegal, isso com informações do próprio setor de siderurgia”, salienta João Ferreira.
Ele também aponta as contradições do programa “Floresta para o Futuro”, do Governo do Estado da Bahia. Criado para impedir o desmatamento de áreas nativas e fazer reflorestamento com outorga e licenciamento facilitado com nota correspondente ao desmate e produção desse carvão, o programa gerou uma contradição. Pela ausência de fiscalização, o programa, que deveria regularizar a questão do desmatamento e licenciamento ambiental na Bahia, acabou estimulando a derrubada da vegetação nativa para que os empresários pudessem acessar os benefícios da política pública para fazer o plantio de eucalipto na área.
Segundo João, os produtores de carvão utilizavam essa capa de legalidade dada pelas notas de carvão de eucalipto para transportar carvão nativo misturado, ou seja, continuaram desmatando e utilizando a mão de obra nas mesmas condições degradantes. “Com o programa Floresta para o Futuro os avanços foram pequenos, fez-se apenas uma reprodução do sistema”, afirma.
Reforma agrária para combater o trabalho escravo
Segundo João Ferreira, a reforma agrária é muito importante para as pessoas vulneráveis ao trabalho escravo nas carvoarias, que na maioria das vezes são oriundas do campo. Ao promover o acesso dessa população a um imóvel rural, “um pedaço de terra”, elas teriam condições de produzir e se sustentar com dignidade. João cita o exemplo de Cândido Sales, que já foi um dos maiores produtores de mandioca do Brasil e que sofreu uma queda na sua produção ao longo do tempo.
“A gente tinha uma mandiocultura fortíssima e com o tempo a carvoaria foi tomando conta, foi ultrapassando isso e a mandiocultura caindo. Isso pela falta de apoio aos produtores rurais,” relembra.
Para a superação desta condição, João defende que é necessário que haja uma reforma agrária de fato, que dê posse e propriedade das terras às pessoas vulneráveis ao trabalho escravo. Para que as pessoas possam produzir, também é necessário que lhes seja assegurado apoio técnico e financeiro, bem como acesso a maquinário.
“Eu creio que esta é uma alternativa que pode fazer com que haja a superação desta condição e que muitas famílias vão conseguir sair da situação de pobreza e de miséria através do acesso a algum meio de produção, no caso, a terra.” encerra o pesquisador.
Da Redação