O cercamento dos mananciais se tornou um instrumento de defesa do meio ambiente e organização comunitária
O cercamento de nascentes é um processo que envolve o georreferenciamento e proteção física dos mananciais com o objetivo de evitar a poluição ou destruição da fonte d’água pela ação humana ou de animais. Mais do que uma ação técnica, o cercamento tem sido um instrumento político dos movimentos sociais para proteger o meio ambiente e fortalecer a organização comunitária na defesa das águas. É o que aponta o projeto Água Bem Comum – ABC desenvolvido pelo Centro de Estudos e Ação Social – CEAS na região do Médio Rio Pardo na Bahia.
O cercamento de nascentes
O projeto surgiu a partir do trabalho desenvolvido pelo CEAS com as mulheres jovens da comunidade de Cachoeira no município de Ribeirão do Largo, próximo a Macarani, ambas na região sudoeste da Bahia. Edilene Alves, que integra a equipe rural do CEAS e atua na região, explicou que a iniciativa surgiu a partir do projeto desenvolvido pelas mulheres da comunidade cujo lema era: “mulheres que ousam lutar, constrói o poder popular” e que através daí saiu a iniciativa de fazer o mapeamento das nascentes na região no intuito de protegê-las.
Depois de fazerem o levantamento das nascentes que precisavam de proteção, um total de 31 somente na comunidade de Cachoeira, as mulheres resolveram escrever um projeto para obterem os recursos necessários para realizarem o cercamento. Daí surgiu o projeto Água Bem Comum – ABC, que teve o apoio dos técnicos do CEAS em sua constituição.
O primeiro cercamento de nascente aconteceu de maneira experimental na comunidade de Cachoeira, em Ribeirão do Largo. Nessa ocasião, sobraram alguns materiais que foram suficientes para cercar outra nascente na comunidade. Edilene ressalta a importância da participação da comunidade, que ajudou com materiais e mão de obra na tarefa comunitária.
“A comunidade participa em todas as etapas: elaboração do projeto, execução das tarefas e refeição coletiva, mostrando a importância do envolvimento de todos”, explica a assessora.
O projeto foi expandido para o município de Encruzilhada, mais precisamente no distrito de Vila do Café, onde possui um dos principais afluentes do Rio Pardo. Na região de Vila Corina, no município de Encruzilhada, o manancial abastece o distrito e desce para o município de Ribeirão do Lago. Utilizando a mesma metodologia, foram cercadas algumas nascentes nesta comunidade no ano de 2023, mesmo ano em que o grupo conseguiu cercar uma nascente na comunidade de Floresta, também no município de Encruzilhada.
Segundo Edilene, nos locais onde as nascentes foram cercadas é possível observar o aumento do fluxo d’água, crescimento de árvores e plantas nativas. A assessora dá o exemplo da comunidade de Floresta, onde, após a proteção da nascente, a água voltou e os moradores já conseguem ter acesso ao recurso hídrico com mais abundância.
“A moradora do local afirmou que a nascente abastecia sete famílias ao redor antes da água acabar. Com o cercamento da nascente, ela acredita que daqui mais algum tempo essas famílias voltarão a receber da natureza essa água”, destaca Edilene.
A assessora aponta que o projeto também conseguiu plantar mudas de árvores em algumas áreas onde as nascentes foram cercadas, como é o caso da região da comunidade de Floresta, onde foram plantadas 50 mudas. Na região de Vila Corina, Edilene aponta que também foram plantadas mudas nos locais onde as nascentes receberam o cercamento, e a previsão é alcançar ainda mais regiões.
“Agora no início do ano já estamos nos mobilizando para cercar mais uma nascente aqui na região em uma comunidade chamada ‘cedro’, região do município de Ribeirão do Largo, que também é banhada pelo Rio Pardo”, aponta Edilene.
Apoio e parcerias
Além da comunidade local através das associações e da comunidade religiosa, também estão envolvidos diretamente no projeto de cercamento e recuperação de nascentes organizações sociais como o Centro de Estudos e Ação Social – CEAS e a Comissão Pastoral da Terra – CPT, que ajudam na articulação e financiamento da iniciativa. Indiretamente o projeto conta com o apoio de diversos agentes públicos e privados na região do Médio Rio Pardo – MRP.
Edilene destaca o apoio que o projeto vem recebendo de diversos atores sociais que integram a discussão sobre a preservação da bacia hidrográfica do Rio Pardo, como o CEAS e CPT, e destaca o papel da Igreja Católica que, segundo ela, tem dado apoio e suporte na luta pela recuperação das nascentes e na mobilização contra o mineroduto que pretendem construir em algumas comunidades da região para transportar minério de ferro de baixa qualidade até o porto de Ilhéus na Bahia.
“A população ainda não entendeu o perigo da chegada da mineração na comunidade”, lamenta Edilene.
A assessora informou que está previsto o cercamento de uma nascente na comunidade de Vila Isabel, uma região que abastece a sede do município de Macarani e que está sendo ameaçada. Segundo ela, a população ainda não entendeu o perigo da chegada da mineração na região e que a parceria com atores como a Igreja Católica é importante para fortalecer a caminhada das lutadoras e lutadores do Rio Pardo que atuam em todo o território da bacia.
Consciência e educação ambiental
Segundo Edilene, é possível perceber uma mudança positiva nos moradores das comunidades onde as nascentes foram cercadas, que passaram a ter mais consciência e sensibilização sobre a importância desse tipo de iniciativa e se interessarem em realizar a proteção das nascentes em suas propriedades, procurando os representantes do projeto para cercar nascentes identificadas.
Ela citou o exemplo da comunidade de Vila Corina, no médio Rio Pardo (MRP), onde surgiu a demanda para o cercamento de 05 nascentes. Segundo ela, os agricultores viram o resultado após a proteção da nascente no vizinho, que a água estava aumentando após o cercamento, não ocupava espaço na propriedade, não atrapalhava a pastagem do gado e que por isso estão interessados em realizar o cercamento das nascentes. Para Edilene, pode ser considerado um impacto social relevante no que diz respeito à conscientização da comunidade.
“Algo bem interessante nas comunidades foi perceber que as pessoas começaram a nos procurar dizendo que tem uma nascente descoberta, em busca de projetos para auxiliá-los a protegerem as nascentes em suas propriedades”, destaca.
Em Vila do Café, a escola estadual do distrito abraçou a causa ecológica depois de conhecer o projeto de cercamento de nascentes e se colocou à disposição para ajudar o grupo nas próximas ações na região. A escola também se comprometeu em trabalhar a temática ambiental e realizar um trabalho de conscientização sobre o tema junto à comunidade escolar nos projetos que acontecem ao longo do ano. Segundo Edilene Alves, o interesse da escola aumentou muito após a repercussão da derrubada de um pequizeiro centenário na região, o que causou a comoção de todos.
Relatos da comunidade
Celene Marinho, 26 anos, técnica em agroecologia e produtora rural, mora no povoado de Vila Corina, distrito de Vila do Café, no município de Encruzilhada, e participou da mobilização para o cercamento de nascentes em sua comunidade. Membro da coordenação da associação de pequenos produtores locais, Celene fala da importância da parceria da associação comunitária com o CEAS em empreendimentos relacionados ao Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE, com orientações que possibilitaram a comercialização de produtos da agricultura familiar para o município.
Foi no aprofundamento da parceria da associação de pequenos produtores de Vila Corina com o CEAS que Celene se envolveu diretamente no projeto de cercamento de nascentes.
“Cercamos duas nascentes e o objetivo era conscientizar o pessoal da comunidade da importância da preservação das nascentes, das árvores e das águas”, destaca.
A técnica em agroecologia relata que em sua comunidade, onde a produção é predominantemente de café, o pessoal utiliza muito veneno no manejo das lavouras e isso prejudica muito a natureza e a primeira nascente selecionada para o cercamento foi numa propriedade com essa característica. Depois de conversar com o produtor e convencê-lo da importância da proteção da nascente para ele próprio, realizou-se a ação com a comunidade e mais uma fonte de vida foi salva.
“Conversei com Edilene e disse, ‘temos que dar um jeito de cercar essa nascente’. A partir daí, fizemos um mutirão e cercamos a nascente e hoje, depois de quase um ano do cercamento, a água começou a brotar, cresceu a vegetação em volta da nascente e ela ficou protegida. A gente viu que voltou a vida da nascente, ou seja, foi muito interessante”, explica.
Celene também relata a experiência que teve com o cercamento de uma nascente na comunidade de Floresta, numa área onde cria-se gado e que antigamente tinha muita água, mas que com o desmatamento para fazer pastagem, o curso d’água secou. Depois do cercamento e proteção da nascente, a área deixou de ser pisoteada pelo gado e foram plantadas árvores em volta com mudas fornecidas pelo projeto.
Parabéns às comunidades e ao CEAS por essa ação tão importante. Um exemplo a ser divulgado, seguido e replicado. Muito bom